segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Mandaram um produto que eu não pedi e ainda estão cobrando. E agora?



Embora essa prática seja considerada abusiva já há um bom tempo pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 39, III, da Lei 8.078/90), ela ainda é cometida com uma frequência espantosa e costuma deixar o consumidor sem saber o que fazer. Assim resolvi fazer um post explicando como a lei trata essa questão.

Primeira pergunta que vem à mente: eu sou obrigado a pagar o valor do produto ou serviço fornecidos sem meu consentimento?

Não. O art. 39, parágrafo-único, da Lei 8.078/90, estabelece que tais produtos ou serviços são considerados amostras grátis e, portanto, não exigem pagamento.

Tal regra existe porque a obrigação de pagar do consumidor necessariamente decorre da existência de um contrato, o qual não existe no caso, visto que para a celebração de um contrato é necessária a manifestação da vontade das partes e para que ele seja válido este consentimento deve se dar de forma livre (art. 104 e seguintes do Código Civil).

Sabendo que não existe contrato, nem muito menos contrato válido, não existe base legal que fundamente eventual cobrança de valores referentes a estes produtos ou serviços, de modo que tal ato constitui nova conduta abusiva passível de reparação civil.

Ressalte-se que a lei não limita o conceito de amostra grátis a determinados valores, de modo que ainda que se tratasse de um carro, por exemplo, o fornecedor não poderá demandar do consumidor o pagamento.

Aqui não cabe a ideia de engano justificável (art. 42, parágrafo-único da Lei 8.078/90), porque tal instituto se refere tão somente à repetição de indébito que será vista mais a frente e nem a tese de enriquecimento sem causa (art. 884 e seguintes do Código Civil), haja vista a existência de expressa previsão legal no sentido de punir o fornecedor pela prática abusiva permitindo que o consumidor lesado se aproprie gratuitamente do bem ou vantagem econômica.

Para evitar a cobrança, ante o receio de que ela ocorra, em tese seria possível o ajuizamento de ação de obrigação de não fazer, visando a expedição de ordem judicial proibitiva estipulando multa em caso de descumprimento.

Porém, na prática, dificilmente o Judiciário conseguirá dar uma resposta rápida o suficiente para impedir que seu nome seja inscrito nos cadastros de restrição ao crédito (SPC, SERASA, CADIN).

Assim, ressalvadas situações específicas e também eventual hipossuficiência financeira do consumidor, o melhor é pagar a fim de evitar a negativação e depois buscar ressarcimento.

Caso você opte por não pagar ou não tenha tido orientações a tempo e já foi negativado, é possível ajuizar ação de obrigação de fazer e também pleitear a respectiva indenização.

Se você optar por pagar, após restar afastado o risco de negativação, é possível ajuizar ação de repetição de indébito requerendo o dobro do valor que foi indevidamente cobrado (art. 42, caput, da Lei 8.078/90).

A repetição do indébito é uma punição da Lei do Consumidor ao fornecedor que cobra inadequadamente e consiste na devolução em dobro do valor cobrado.

Por exemplo, a empresa Frozen envia um ar condicionado para a minha casa sem que eu o tenha adquirido e a partir daí passam a cobrar o valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a título de pagamento.

Conforme explicado acima, inexiste contrato de compra e venda celebrado entre nós, logo este ar condicionado é amostra grátis e qualquer cobrança a ele relativa é ilegal, inclusive o frete (contrato acessório que acompanha o principal).

Mesmo sabendo da ilegalidade da cobrança, diante da morosidade do Judiciário e do receio de ter o nome negativado eu efetuo o pagamento do valor total.

Assim, aplicando a repetição do indébito (art. 42, parágrafo-único, da Lei 8.078/90) a empresa Frozen terá que me devolver a quantia de R$ 4.000,00 (quatro mil reais), a qual no caso buscarei no Judiciário juntamente com a respectiva indenização por danos morais.

Há uma exceção à essa regra que é o engano justificável, mas quando ele ocorreria?

Pois bem, um engano é um equívoco que pode dizer respeito ao valor cobrado, ao produto ou serviço que fundamenta a cobrança ou à pessoa do devedor.

Para que o engano seja justificável entendo que deve haver um conjunto de circunstâncias que mesmo tomadas as cautelas/cuidados razoavelmente esperados de uma pessoa comum (os penalistas diriam do homem médio) não seria possível detectar o erro, tornando-o escusável e, portanto, liberando o fornecedor da obrigação de devolver o valor em dobro.

Por exemplo, se existirem dois irmãos gêmeos, cobrar de um o perfume que fora vendido ao outro por contrato verbal constitui engano justificável, outro exemplo seria cobrar parcelas de um fogão de um homônimo, cuja mãe tem o mesmo nome da mãe do verdadeiro devedor.

Fora hipóteses como essas, as quais precisarão ser identificadas pelo juiz caso a caso, não vislumbro a ocorrência de engano justificável, pois simples ineficiência na gestão documental ou dos registros da empresa ao meu ver não ensejam a caracterização desse instituto.

O Superior Tribunal de Justiça, porém, possui jurisprudência consolidada no sentido de que a devolução do valor em dobro só deveria acontecer em caso de má-fé, se não ocorreria a simples devolução do valor indevidamente pago.

Entendo que o STJ está equivocado.

Primeiro, porque o dispositivo nada fala sobre má-fé e não posso ver como uma interpretação sistemática ou teleológica por melhor elaborada que seja possa alterar o texto legal adicionando requisitos inexistentes a um instituto jurídico.

Em nosso ordenamento a única forma legítima que o Judiciário tem para alterar a lei é declarando sua inconstitucionalidade e ainda assim só poderá atuar como legislador negativo.

Ao acrescentar a exigência de má-fé à repetição de indébito, o Superior Tribunal de Justiça viola o Princípio da Legalidade e a Separação dos Poderes da República, usurpando função do Congresso Nacional.

Ademais, em sua jurisprudência a Corte faz a distinção entre a repetição de indébito em dobro (devolução do valor em dobro) e a repetição de indébito simples (devolução do valor), o que não existe no âmbito da Lei 8.078/90, pois quando a mesma fala em repetição de indébito fala necessariamente da devolução em dobro.

Segundo, porque a interpretação adotada não se pauta por uma exegese tecnicamente correta do texto legal, a qual demanda que sejam identificados os comandos normativos e só então suas exceções.

Isto é importante porque quando uma hipótese é exceção, a ela deve ser conferida interpretação restritiva, salvo nos casos de interpretação conforme a Constituição.

No caso em tela, o comando normativo principal estabelece que via de regra a cobrança indevida gera a repetição do indébito e apenas excepcionalmente isto não ocorrerá.

O Superior Tribunal de Justiça em vez de traçar diretrizes que auxiliem os juízes a identificar a exceção (engano justificável) acabou trazendo elemento alheio ao contexto para o bojo da interpretação, o qual tem inclusive o condão de transformar a exceção em regra.

Isto porque a boa-fé, enquanto estado psicológico de firme crença de estar fazendo o certo (boa-fé subjetiva) ou enquanto dever de lealdade/probidade (boa-fé objetiva) se presume, ao passo que a má-fé se prova.

Assim, como se não bastasse a fragilidade do consumidor em relação ao fornecedor, ele ainda terá o ônus de demonstrar a má-fé da parte contrária.

Se a prova já é difícil para o consumidor em face do parco acesso a recursos que possui para produzi-las e de seu natural desconhecimento técnico do produto ou serviço, imagine se lhe for exigida a demonstração da má-fé.

Além disso, é sabido que boa parte dos abusos ocorre exatamente pela falta de investimento das empresas em capacitação de seu pessoal, gestão adequada dos processos e atendimento ao público.

O problema é que tal falta de investimento é proposital, haja vista serem as corporações grandes máquinas produtoras de lucro e externalizadoras de custos, de modo que não se faz razoável para elas investir em um serviço de ótima qualidade e reduzir a margem de lucro, quando se pode gastar menos ao permitir que o consumidor pague a conta do serviço mal prestado.

Na prática isso funciona muito bem para elas porque as grandes prestadoras de serviços se aproveitam da dificuldade no acesso à Justiça, da ineficiência e falta de proatividade dos órgãos fiscalizadores, da morosidade do Judiciário e das condenações em valores irrisórios.

Se isso não é má-fé eu não sei o que é, mas então me pergunto: como raios alguém conseguiria praticamente elaborar um estudo sociológico dentro do processo para demonstrar que aquela ligação para o SAC caiu de propósito ou que aquele produto não pedido foi enviado para sua casa pra ver se cola?

O Superior Tribunal de Justiça não entendeu o espírito da Lei 8.078/90 que pretende punir não apenas quem age com a intenção de fazer o mal, mas também aquele que por desídia, falta de diligência ou mesmo de habilidade prejudica o consumidor praticando contra ele atos abusivos.

Enviar um produto não pedido, prestar um serviço não contratado e ainda cobrar por eles se utilizando da ameaça de inclusão em órgãos restritivos é quase uma extorsão, e por isso estes são atos condenados e punidos severamente pelo Legislador.

Assim, aplicar o entendimento do STJ significa na prática esvaziar o instituto jurídico da repetição do indébito chancelando as práticas nefastas de uma espécie abominável de capitalismo.

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